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A Anatomia dos 5 Solas: Mais que Slogans, a Lógica do Evangelho

Outubro chega, e com ele, a inevitável maré de celebrações da Reforma Protestante. As redes sociais se enchem de citações de Lutero, imagens de Wittenberg e, claro, os onipresentes slogans: “Sola Scriptura!”, “Sola Fide!”, “Soli Deo Gloria!”.

Não há nada de errado em celebrar. O problema é a repetição vazia.

Corremos o risco de tratar os pilares da Reforma como tratamos uma caixa de ferramentas velha no porão: reverenciamos sua importância histórica, mas raramente abrimos para ver se as ferramentas ainda têm corte. Para muitos, os 5 Solas se tornaram relíquias de museu — artefatos doutrinários que admiramos por trás de um vidro, mas que não usamos mais para construir ou demolir nada.

O resultado é uma geração que conhece os termos, mas não entende a lógica. Eles aprendem a recitar os Solas como se fossem um “cardápio” de doutrinas independentes, onde talvez se possa “escolher” Sola Fide e Sola Scriptura, mas deixar Sola Gratia de lado (afinal, eu preciso cooperar, certo?).

Este artigo se recusa a tratar o Evangelho como um cardápio.

Nossa tese é simples: os 5 Solas não são cinco doutrinas separadas. São cinco facetas da mesma joia; cinco artérias ligadas ao mesmo coração; cinco órgãos vitais de um corpo teológico indivisível. Se você remover um, o sistema inteiro entra em colapso.

O objetivo deste artigo, portanto, é fazer o que o nosso título (“A Anatomia”) propõe. Vamos mover os 5 Solas do “museu” empoeirado para a “sala de cirurgia” asséptica. Vamos pegá-los, não como slogans, mas como o mais afiado bisturi diagnóstico que a Igreja possui.

Dissecaremos essa anatomia, não por mero exercício acadêmico, mas para provar que este sistema lógico, este corpo vivo, é a única coisa capaz de diagnosticar — e curar — as heresias sofisticadas e as doenças espirituais que assolam a Igreja no século XXI. Se a sua fé não é construída sobre esta lógica inquebrável, ela pode não ser a fé da Reforma.

O Diagnóstico (O Porquê da Reforma)

Para entender a cura, precisamos primeiro diagnosticar corretamente a doença. Se perguntarmos ao cristão comum o que causou a Reforma Protestante, a resposta provavelmente será: “a venda de indulgências” ou “a corrupção moral do clero”.

Isso não está errado, mas é perigosamente incompleto.

Focar nas indulgências é como diagnosticar um câncer terminal como se fosse apenas uma febre. A febre (a venda do perdão) era apenas o sintoma visível e grotesco de uma doença teológica muito mais profunda que havia se instalado no coração da Igreja Romana. A verdadeira batalha de Martinho Lutero, João Calvino e os demais reformadores não foi primariamente contra a imoralidade do clero, mas contra a teologia oficial que a produzia.

O que realmente estava em jogo em 1517 eram duas crises fundamentais que haviam corrompido o Evangelho.

A Primeira Crise: Uma Crise de Autoridade

A primeira pergunta que a Reforma teve que responder foi: Quem fala por Deus? Onde reside a autoridade final para a fé e a prática?

Para a Igreja Romana, a resposta era (e ainda é) um “banquinho de três pernas”. A autoridade, segundo Roma, reside igualmente em:

  1. A Sagrada Escritura (a Palavra escrita de Deus).
  2. A Sagrada Tradição (os ensinamentos não escritos, supostamente transmitidos pelos apóstolos e preservados pela Igreja).
  3. O Sagrado Magistério (a autoridade de ensino viva da Igreja, encarnada no Papa e nos bispos, que sozinhos têm o direito de interpretar autenticamente a Escritura e a Tradição).

Neste sistema, a Escritura nunca está sozinha. Na prática, o Magistério se coloca acima da Escritura, pois é ele quem diz ao povo o que a Escritura e a Tradição significam. Foi esse sistema que permitiu a criação de doutrinas estranhas ao texto bíblico, como o purgatório, a penitência sacramental e, claro, as indulgências.

A Segunda Crise: Uma Crise de Soteriologia (A Doutrina da Salvação)

A segunda e mais urgente pergunta era: O que devo fazer para ser salvo?

A resposta de Roma era complexa, mas se resumia a uma palavra: cooperação. O sistema romano era (e ainda é) fundamentalmente sinergista. Sinergismo (do grego syn-ergos, “trabalhar junto”) é a crença de que a salvação é um esforço cooperativo entre Deus e o homem.

Nessa visão, Deus faz a Sua parte (através da graça infundida no batismo), mas o homem deve fazer a sua parte, cooperando com essa graça através da fé, das obras de caridade, da participação nos sacramentos (especialmente a penitência e a Eucaristia) e da obediência aos mandamentos da Igreja. A justiça não era algo declarado por Deus sobre o pecador (imputação), mas algo infundido no pecador, que ele deveria então desenvolver e manter. Se falhasse, precisava “recarregar” essa graça através dos sacramentos.

Aqui, usamos a lógica assertiva de R.C. Sproul: a Igreja Romana havia criado um sistema onde a salvação dependia, em última instância, da performance do indivíduo. A obra de Cristo era necessária, mas não era suficiente.

Foi contra este pano de fundo que a Reforma explodiu. A Reforma não foi uma inovação; foi uma restauração. Foi a recuperação radical do monergismo (do grego mono-ergos, “trabalhar sozinho”) — a doutrina bíblica de que Deus salva pecadores do início ao fim, sem qualquer cooperação ou mérito humano.

As indulgências foram apenas o estopim. A pólvora era a própria glória de Deus, e os 5 Solas foram a explosão que restaurou a verdade de que Deus é o único Autor, Agente e Consumador da nossa salvação.

A Fundação Epistemológica: Como Sabemos a Verdade?

O primeiro Sola não é o primeiro por acaso; é a base de todos os outros. A pergunta que Sola Scriptura força à mesa é: “Quem dá as cartas?” Na disputa pela verdade, quem tem a palavra final? Quem é o juiz supremo?

A Igreja Romana, como vimos, responde com seu “banquinho de três pernas”: A Escritura, a Tradição e o Magistério. Nesse sistema, a Bíblia é, na melhor das hipóteses, apenas uma das fontes de autoridade e, na prática, a menos importante. Afinal, é o Magistério (o Papa) quem detém o monopólio da interpretação. A Tradição pode adicionar doutrinas (como a assunção de Maria) e o Magistério pode declará-las infalíveis. A Escritura, neste cenário, fica refém da Igreja.

A Reforma respondeu a isso não com uma inovação, mas com uma restauração radical da autoridade. Sola Scriptura declara que a Bíblia, e somente a Bíblia, é a única regra de fé e prática infalível, inerrante e suficiente para a Igreja.

É crucial entender o que isso não significa. Os reformadores não estavam defendendo a Nuda Scriptura (Escritura Nua). Eles não jogaram fora 500 anos de credos, concílios e teologia (como os Anabatistas Radicais fizeram). Eles valorizavam a tradição, liam os pais da Igreja e respeitavam os credos ecumênicos. A diferença é de hierarquia.

Para Roma, a autoridade é: Tradição + Escritura + Magistério = Regra de Fé. Para a Reforma, a autoridade é: Escritura > Tradição + Credos + Ensino da Igreja.

A tradição e os credos são autoridades ministeriais, úteis e importantes, mas estão sob a autoridade magisterial e final da Escritura. Se a tradição contradiz a Escritura, a tradição está errada. Ponto final.

A Conexão Lógica

Aqui está o ponto nevrálgico: sem Sola Scriptura, todos os outros Solas são reduzidos a meras opiniões teológicas.

Por quê? Porque se a Igreja (o Magistério) tiver a autoridade final para definir o que é o Evangelho, ela pode simplesmente redefinir os termos.

Se a Igreja pode declarar que a salvação requer fé e obras de penitência (baseando-se em sua Tradição), então o Sola Fide morre. Se a Igreja pode declarar que a graça é infundida, mas precisa da nossa cooperação (sinergismo), então o Sola Gratia morre. Se a Igreja pode declarar que o sacrifício de Cristo é reapresentado na Missa e que os méritos dos santos podem ser aplicados a nós, então o Solus Christus morre.

O Sola Scriptura é o “cão de guarda” do Evangelho. Ele é a garantia de que o homem, mesmo o homem religioso, não pode alterar a Palavra de Deus para adequá-la aos seus próprios sistemas. Se o Evangelho deve ser Sola Gratia (Somente a Graça), a definição desse Evangelho deve ser Sola Scriptura (Somente a Escritura).

Qualquer outra coisa é, em última análise, Sola Ecclesia — Somente a Igreja. E esse foi o exato diagnóstico da doença que os Reformadores combateram.

A Causa Objetiva: O Que Deus Fez?

Uma vez que estabelecemos a Sola Scriptura como a autoridade final que define o Evangelho, a próxima pergunta lógica é: “O que, exatamente, é esse Evangelho?”

Aqui entramos no coração pulsante da anatomia da Reforma. Vamos analisar Sola Gratia (Somente a Graça) e Solus Christus (Somente Cristo) juntos, pois eles são as duas câmaras do mesmo coração soteriológico. Um não pode bater sem o outro. Eles respondem às duas partes da obra objetiva de Deus na salvação.

SOLA GRATIA (Somente a Graça)

O Sola Gratia responde à pergunta: “Por quem a salvação é iniciada?”

A resposta da Reforma, ecoando Agostinho e Paulo, é um retumbante: 100% por Deus.

A teologia romana medieval (e moderna) é fundamentalmente sinergista. Ela ensina que o homem, embora caído, retém uma centelha de bondade ou uma capacidade de cooperar com a graça de Deus. Nessa visão, a graça é como um “medicamento” que Deus oferece ao pecador “doente”, e o pecador deve exercer sua vontade para aceitar e aplicar o remédio. A salvação é uma parceria.

A Reforma diagnosticou isso como uma traição ao Evangelho bíblico. Os reformadores leram Efésios 2:1 e levaram a sério: nós não estávamos “doentes”; estávamos “mortos em nossos delitos e pecados”.

Um homem doente pode estender a mão para o remédio. Um cadáver não pode fazer nada.

Sola Gratia é a afirmação do monergismo. A salvação não é uma cooperação; é uma ressurreição. A graça não é uma oferta dependente da nossa aceitação, mas uma operação soberana de Deus que muda a disposição do nosso coração. É Deus quem nos regenera, nos dá o dom da fé e nos traz à vida, antes que possamos fazer qualquer coisa, inclusive crer. Como disse Sproul, a regeneração precede a fé. A graça é a causa da nossa fé, não o efeito dela.

SOLUS CHRISTUS (Somente Cristo)

Se Sola Gratia responde quem inicia a salvação, Solus Christus responde quem realiza e garante a salvação.

A resposta é, novamente, 100% por Cristo.

Para a Igreja Romana, a obra de Cristo na cruz foi o grande mérito que tornou a salvação possível, mas ela não é suficiente por si só para salvar completamente. O sistema romano acrescenta uma série de “anexos” ao mérito de Cristo:

  • Os Sacramentos: A graça é infundida e mantida através deles.
  • O Purgatório: Um lugar onde os pecados restantes devem ser purgados antes de se entrar no céu.
  • O Tesouro de Méritos: A ideia de que as “obras extras” dos santos podem ser aplicadas aos fiéis (a base das indulgências).
  • A Missa: Vista não apenas como uma lembrança, mas como uma reapresentação (ou uma renovação incruenta) do sacrifício de Cristo no altar.

Solus Christus é a navalha teológica que corta fora todas essas adições humanas. Declara que a obra de Jesus Cristo é perfeita, completa e suficiente. Sua vida de obediência perfeita e Sua morte expiatória na cruz satisfizeram plenamente a justiça de Deus.

Não precisamos dos méritos dos santos; o mérito de Cristo é suficiente. Não precisamos do fogo do purgatório; o sangue de Cristo é suficiente para purificar. Não precisamos reapresentar Seu sacrifício na Missa; Ele “ofereceu, uma vez por todas, um único sacrifício pelos pecados” (Hebreus 10:12).

A Conexão Lógica

Veja como o organismo funciona: Sola Gratia e Solus Christus são inseparáveis.

A Graça (Sola Gratia) é a causa soberana e monergista da salvação. Cristo (Solus Christus) é o agente e o mérito pelo qual essa graça opera. Você não pode ter um sem o outro.

Tentar ter Sola Gratia sem Solus Christus é um absurdo. Significaria que Deus nos salva graciosamente, mas o faz através de nossos esforços, dos santos ou dos sacramentos. Isso anula a graça.

Tentar ter Solus Christus sem Sola Gratia (a posição sinergista) é igualmente impossível. Significaria que a obra de Cristo foi suficiente, mas sua aplicação depende de nós a iniciarmos ou cooperarmos com ela. Isso anula a suficiência de Cristo e transforma a fé em uma obra meritória.

O Evangelho da Reforma é que a graça de Deus não é uma possibilidade abstrata; a graça de Deus nos é dada em Cristo. Ele é a personificação e o executor da graça.

O Instrumento Subjetivo: Como Recebemos a Salvação?

Aqui, a lógica da anatomia do Evangelho se torna inevitável. Se já estabelecemos que:

  1. A salvação é iniciada 100% por Deus (Sola Gratia).
  2. A salvação é realizada 100% por Cristo (Solus Christus).

Então a pergunta “Como recebemos essa salvação?” só pode ter uma resposta. Se a nossa contribuição meritória para a causa ou realização da salvação é 0%, então a nossa recepção dela também deve ter 0% de mérito.

É aqui que Lutero travou a batalha central de sua vida, chamando o Sola Fide de “o artigo pelo qual a Igreja se mantém ou cai”.

A Igreja Romana ensinava (e ainda ensina) que a justificação é um processo que começa com a fé (muitas vezes infundida no batismo), mas que requer a cooperação humana através de obras de amor, caridade e participação nos sacramentos para ser mantida e aumentada. Nesse sistema, a fé é uma obra, talvez a primeira, mas ainda uma obra necessária juntamente com outras para alcançar a justiça final.

A Reforma rejeitou isso como “outro evangelho”.

Sola Fide declara que a justificação — o ato de Deus nos declarar justos diante Dele — não é recebida por fé mais obras. Ela é recebida somente pela fé.

A fé, portanto, não é a nossa “obra” que oferecemos a Deus. A fé não é o nosso mérito. A fé é o instrumento. É a mão vazia do mendigo estendida para receber o dom gratuito. A fé não tem valor em si mesma; seu valor está inteiramente no objeto em que ela confia: a obra perfeita e completa de Jesus Cristo.

Somos salvos, como dizia a famosa máxima da Reforma, “pela graça somente, através da fé somente, por causa de Cristo somente”.

A Conexão Lógica 

Aqui precisamos ser teologicamente precisos, como R.C. Sproul incansavelmente nos ensinou. A antítese do Sola Fide não é simplesmente a “salvação pelas obras” (como o Pelagianismo bruto). A antítese católica, muito mais sutil, é a “salvação pela fé mais as obras”.

É a partícula “somente” que Roma rejeita.

Para a Reforma, a justificação é pela fé somente, mas não por uma fé que está somente.

O que isso significa? Significa que a fé que justifica (o instrumento) nunca está sozinha no crente (o sujeito). A fé salvadora é uma fé viva, um dom do Espírito Santo (Sola Gratia), que inevitavelmente e necessariamente produzirá o fruto das boas obras.

Nós não somos justificados pelas nossas obras, mas somos justificados por uma fé que opera. As boas obras não são a causa da nossa salvação, mas a evidência dela. Elas são o fruto, não a raiz.

No momento em que um sistema teológico diz que a justificação final depende da fé mais qualquer outra coisa — fé + batismo, fé + caridade, fé + obediência — ele trai o Sola Fide. E ao trair o Sola Fide, ele nega que a obra de Cristo foi suficiente (Solus Christus) e que a salvação é um dom gratuito (Sola Gratia). O corpo inteiro adoece instantaneamente.

O Propósito Final (O Telos): Por Que Tudo Isso Importa?

Chegamos ao topo da montanha, ao propósito final para o qual todo o sistema existe. O Soli Deo Gloria não é meramente o “quinto Sola” de uma lista; ele é o ápice, o resultado inevitável e a motivação central de todos os quatro anteriores. É o telos — o objetivo final — de toda a Escritura e de toda a salvação.

Se a pergunta central da Reforma foi “Como o homem é salvo?”, a resposta final é: “De uma forma que glorifique somente a Deus”.

Os reformadores entenderam que o sistema sinergista de Roma era, em sua essência, um sistema de “roubo de glória”. Ao insistir que a autoridade final estava na Igreja (e não Sola Scriptura), Roma glorificava o Magistério. Ao insistir que a salvação dependia da cooperação humana (e não Sola Gratia), Roma glorificava a vontade humana. Ao insistir que o mérito de Cristo precisava ser suplementado pelos santos e sacramentos (e não Solus Christus), Roma glorificava o homem e seus rituais. Ao insistir que a justificação dependia da fé e das obras (e não Sola Fide), Roma glorificava a performance humana.

A veneração de Maria e dos santos, o poder do Papa, a eficácia dos rituais ex opere operato (pela obra realizada) — tudo isso servia para dividir a glória que pertence unicamente a Deus e distribuí-la entre criaturas e instituições humanas.

A Conexão Lógica

Aqui, a anatomia se revela em sua perfeição final. O Soli Deo Gloria é a conclusão irrefutável da premissa monergista.

A lógica é simples e implacável: Aquele que faz a obra recebe a glória.

Se a salvação depende, em qualquer grau, de mim — seja da minha autoridade para definir a verdade, da minha cooperação para iniciar a graça, ou das minhas obras para completar a justificação — então a glória é, necessariamente, dividida. Eu posso, no final, reivindicar uma parte do crédito.

Mas, se o Evangelho da Reforma é verdadeiro:

  • Se é 100% a Escritura que define a verdade (Sola Scriptura)…
  • Se é 100% a Graça de Deus que inicia a salvação (Sola Gratia)…
  • Se é 100% o mérito de Cristo que realiza a salvação (Solus Christus)…
  • Se é 100% a (que ela mesma é um dom) que recebe a salvação (Sola Fide)…

Então 100% da glória deve, por necessidade lógica e teológica, ir Somente a Deus.

O Soli Deo Gloria não é apenas um slogan para fechar a lista. É a razão pela qual a lista existe. É a guarda que protege a doutrina da salvação da corrupção humana, garantindo que nenhum homem “se glorie na presença de Deus” (1 Coríntios 1:29). A salvação é de Deus, por Deus, e para Deus. A Ele, e somente a Ele, seja a glória.

A Patologia Moderna (Por que a Reforma Ainda Não Acabou)

Se os 5 Solas são a anatomia de um Evangelho saudável, usá-los como bisturi revela uma verdade desconfortável: a Igreja do século XXI está, em muitos aspectos, tão doente quanto a do século XVI. A doença não foi curada; ela apenas sofreu metástase, criando novas patologias.

A Reforma não acabou por dois motivos: primeiro, a Igreja de Roma não mudou sua teologia fundamental. Segundo, o próprio Protestantismo Evangélico está esquecendo por que protestou, criando suas próprias versões das heresias que os reformadores combateram.

Vamos ao diagnóstico.

A Negação do Sola Scriptura

  • No Romanismo Moderno: A posição de Roma permanece intocada. O Concílio Vaticano II (década de 1960) reafirmou que a autoridade repousa no “banquinho de três pernas” (Escritura, Tradição e Magistério). A autoridade final de fato ainda é o Magistério, que define o que a Escritura e a Tradição significam. Dogmas como a Assunção de Maria (definido em 1950), que não têm base bíblica, são a prova viva de que a Tradição e o Magistério ainda triunfam sobre a Escritura.
  • No Evangelicalismo Moderno: A batalha é contra o subjetivismo. A autoridade final não é o Papa, mas o “eu”. O Sola Scriptura foi trocado pelo Sola Experientia. A autoridade da Palavra é substituída pela autoridade do “arrepio”, da “revelação pessoal” do pregador, ou pelo pragmatismo do “o que funciona para o crescimento da minha igreja”. Em ambos os casos, seja pelo Papa ou pela experiência pessoal, a Palavra de Deus é colocada sob o julgamento do homem.

A Negação do Sola Gratia

  • No Romanismo Moderno: Roma ainda é fundamentalmente sinergista. Os Cânones do Concílio de Trento, que amaldiçoam qualquer um que afirme que somos salvos Sola Gratia ou Sola Fide, jamais foram revogados. O Catecismo moderno ainda ensina que a graça é “infundida” (no batismo) e requer nossa cooperação para a justificação. O homem ainda contribui para sua salvação.
  • No Evangelicalismo Moderno: O sinergismo foi apenas reembalado. Ele aparece como o Evangelho Terapêutico, que vê o homem como “ferido” e precisando de autoestima, não como “morto” (Ef 2:1) e precisando de ressurreição. É o pelagianismo disfarçado do “Deus ajuda quem se ajuda”, do “você é bom o suficiente” ou do “declare sua vitória”. Em ambos os sistemas, a graça de Deus não é soberana e monergista; ela espera pela iniciativa ou cooperação humana.

A Negação do Solus Christus

  • No Romanismo Moderno: Roma afirma a mediação de Cristo, mas nega sua suficiência e exclusividade. O sacrifício de Cristo é “reapresentado” (ou tornado presente) na Missa. A devoção popular (e teologia) atribui a Maria títulos como “Medianeira de todas as graças” e “Corredentora”, e o tesouro de méritos dos santos ainda é uma doutrina oficial. Cristo fez a Sua parte, mas a Igreja e seus santos precisam suplementá-la.
  • No Evangelicalismo Moderno: A negação é, por vezes, ainda mais grosseira. É o Pluralismo Religioso ou o Inclusivismo que afirma que “todos os caminhos levam a Deus” ou que Jesus é “um” caminho, mas não “o” caminho. É um ataque frontal à declaração de Cristo em João 14:6. O Solus Christus é visto como arrogante ou intolerante, sendo trocado por um “Cristo” genérico que se encaixa em qualquer espiritualidade.

A Negação do Sola Fide

  • No Romanismo Moderno: Esta continua sendo a linha de batalha central. Roma ainda condena a justificação “somente pela fé”. Para o catolicismo, a justificação é um processo que depende da fé mais as obras de caridade mais os sacramentos. A justiça de Cristo não é imputada (creditada) a nós; ela é infundida em nós, e devemos mantê-la e aumentá-la por nossas próprias obras.
  • No Evangelicalismo Moderno: O ataque é mais sutil. É o Moralismo. A identidade cristã não se baseia na justiça imputada de Cristo, mas na performance do crente. À direita, é o moralismo de que seu status diante de Deus depende de seu comportamento (não beber, não fumar, votar certo). À esquerda, é o moralismo do “Evangelho Social”, onde sua justificação parece depender de seu ativismo social. Em ambos os casos, a fé é trocada pela performance, e o crente é forçado a olhar para si mesmo, e não para Cristo, em busca de segurança.

A Negação do Soli Deo Gloria

  • No Romanismo Moderno: A glória ainda é dividida. A veneração (dulia) aos santos e a hyperdulia (veneração especial) a Maria, por mais que se tente distinguir de latria (adoração), na prática desviam a devoção e a glória que pertencem somente a Deus. A infalibilidade do Papa e a glória da própria instituição da Igreja competem pela glória que é devida somente a Deus.
  • No Evangelicalismo Moderno: A negação é o Evangelho Antropocêntrico (centrado no homem). A pergunta central da pregação moderna não é “Deus é glorificado?”, mas “Eu sou ajudado?”. É o evangelho da saúde, riqueza e felicidade. Deus é reduzido a um “gênio da lâmpada” cósmico cuja função é realizar nossos sonhos e nos dar nossa “melhor vida agora”. O homem, e não Deus, tornou-se o centro do culto. O diagnóstico é o mesmo: a glória de Deus foi trocada pela glória do homem.

Conclusão: Um Corpo Vivo, Não um Fóssil

Ao final desta dissecação, a conclusão é inevitável: os 5 Solas da Reforma não são relíquias de um museu teológico. Eles não são slogans empoeirados de um evento que terminou em 1517. Eles são a anatomia do Evangelho vivo. São o sistema imunológico da sã doutrina.

Como vimos, este não é um “cardápio” onde se pode escolher o que agrada. É um organismo. Ataque o Sola Scriptura, e você destrói a autoridade do Evangelho. Negue o Sola Gratia, e você destrói a fonte do Evangelho. Negue o Solus Christus, e você destrói o mérito do Evangelho. Negue o Sola Fide, e você destrói a recepção do Evangelho. E se você atacar qualquer um deles, você inevitavelmente rouba o propósito do Evangelho: o Soli Deo Gloria.

A Reforma, portanto, não foi um evento único; é um chamado perpétuo. A famosa máxima Ecclesia reformata, semper reformanda — “A Igreja reformada, sempre se reformando” — não significa que a Igreja está sempre mudando a verdade. Significa que a Igreja está sempre retornando à verdade. É um chamado constante para pegar o bisturi do Sola Scriptura e cortar os tumores do sinergismo, do moralismo e da idolatria centrada no homem que perpetuamente tentam crescer no coração humano.

A batalha hoje é exatamente a mesma de 500 anos atrás. A roupagem mudou, mas a doença é idêntica. Seja o Papa em Roma ou o pregador terapêutico na TV, o inimigo é o mesmo: qualquer sistema que desvie a glória de Deus para a autonomia do homem.

A pergunta que este artigo deixa para você não é histórica, mas existencial. O “evangelho” em que você confia para a sua eternidade é este corpo completo, lógico e bíblico? Ou é uma versão diluída, doente, corrompida?

Você confia na autoridade final da Escritura ou na sua experiência? Você confia na graça soberana de Deus ou na sua cooperação? Você confia na obra suficiente de Cristo ou na sua performance? A sua fé é um instrumento que recebe um dom ou é uma obra que contribui para um salário?

O Evangelho da Reforma não oferece lugar para a glória humana. Ele nos esvazia de toda autoconfiança para que possamos ser preenchidos com a justiça de outro. É um sistema intransigente, lógico, completo e glorioso. E é a única boa notícia que existe.

A Ele toda a glória, pelos séculos dos séculos, amém!


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