No momento, você está visualizando Da Razão ao Caos: A Perda da Verdade e a Resposta da Teologia Reformada

Da Razão ao Caos: A Perda da Verdade e a Resposta da Teologia Reformada

Vivemos em uma era marcada pela crise da verdade na pós-modernidade, onde a verdade objetiva é rejeitada em favor de convicções subjetivas, representando um ataque direto à essência da fé cristã, que se fundamenta na pessoa de Jesus Cristo, Aquele que declarou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). A sociedade contemporânea encontra-se em um estado de dissonância cognitiva e caos moral, onde padrões objetivos de certo e errado são rejeitados e uma sensação de crise iminente permeia a cultura. Tal crise, no entanto, não é um evento isolado; ela é o resultado de uma longa trajetória histórica que se inicia com a exaltação da razão humana no Iluminismo e culmina na fragmentação pós-moderna. Este artigo busca traçar essa progressão, analisando como a concepção de verdade foi erodida ao longo dos séculos, e propor uma resposta fundamentada na teologia reformada, que aponta para a restauração da verdade em Cristo.

O Iluminismo: A Revolução da Razão e a Rejeição da Revelação

No final do século XVII e ao longo do XVIII, o Iluminismo emergiu como um movimento que colocou o homem no centro do conhecimento, elevando a razão humana ao status de árbitro supremo da verdade. Pensadores como René Descartes, com seu célebre “Penso, logo existo”, Voltaire e Rousseau defenderam a autonomia do intelecto humano, relegando a revelação divina a um papel secundário. Deus, quando considerado, era tolerado, mas não mais necessário como fonte de verdade. Um marco desse período foi a revolução epistemológica de Immanuel Kant, descrita como uma “revolução copernicana” na filosofia. Kant propôs que o sujeito é ativo no processo de conhecimento, organizando a diversidade de experiências em um todo coerente, o que ele denominou Weltanschauung ou cosmovisão. Tal mudança, embora seminal para a filosofia moderna, marcou um rompimento com a dependência da revelação divina, sistematizando a idolatria da criatura em detrimento do Criador, como adverte Romanos 1:25. O Iluminismo, ao priorizar a razão sobre a fé, lançou as bases para a secularização do pensamento ocidental, abrindo caminho para a erosão da verdade objetiva.

O Racionalismo: A Razão como Ídolo

O racionalismo, que se consolidou no mesmo período, levou a ênfase iluminista a um extremo ainda mais radical. Pensadores como Descartes, Spinoza e Leibniz buscaram verdades absolutas exclusivamente por meio da razão, descartando a necessidade de qualquer revelação divina. A razão tornou-se a nova “autoridade inerrante”, capaz, segundo eles, de desvendar as leis do universo sem recurso a fontes transcendentais. A epistemologia internalista de Kant, que tornava o sujeito o centro do processo cognitivo, reforçou essa visão, mas também expôs suas limitações. A razão humana, incapaz de responder às questões últimas da existência — como o propósito do universo ou a origem do ser —, revelou-se insuficiente para sustentar o peso que lhe foi atribuído. Como alertou Abraham Kuyper, uma cosmovisão que exclui Deus transforma a razão em um ídolo, mas este ídolo, por sua própria natureza finita, é incapaz de sustentar a complexidade da realidade (Kuyper, 1898). A desilusão com o racionalismo, portanto, preparou o terreno para o próximo estágio na perda da verdade: o relativismo.

O Relativismo: A Desilusão com a Razão e a Fragmentação da Verdade

Nos séculos XIX e XX, a promessa iluminista de uma verdade absoluta acessível pela razão desmoronou, dando origem ao relativismo. Pensadores como Friedrich Nietzsche, que afirmou que “não há fatos, apenas interpretações”, e Søren Kierkegaard, com sua ênfase existencialista na subjetividade, rejeitaram a ideia de uma verdade universal. A cosmovisão, agora redefinida por filósofos como Wilhelm Dilthey, passou a ser vista como uma resposta à necessidade humana de atribuir sentido a um cosmos intrinsecamente sem significado. Nesse contexto, a verdade tornou-se relativa, e cada grupo individual passou a construir suas próprias “ilhas de significado”, como descreveu Francis Schaeffer (Schaeffer, 1968). O relativismo fragmentou a sociedade, dissolvendo a coesão moral e cultural que outrora se ancorava em verdades compartilhadas. A “modernidade líquida”, termo cunhado por Zygmunt Bauman, captura bem essa fluidez e desestruturação, onde significados objetivos, até mesmo na linguagem, são rejeitados, dificultando a comunicação e aprofundando a fragmentação cultural.

O Subjetivismo e a Pós-Modernidade: A Dissolução da Verdade Objetiva

A pós-modernidade, que se consolidou entre os séculos XX e XXI, representa o ápice dessa trajetória de rejeição à verdade objetiva. Jean-François Lyotard definiu o pós-modernismo como uma “desconfiança das metanarrativas”, enquanto Michel Foucault argumentou que a verdade é uma construção social moldada por relações de poder (Lyotard, 1979; Foucault, 1975). Nesse cenário, a pós-verdade emergiu como um fenômeno cultural que prioriza convicções internas sobre fatos objetivos, abandonando tanto a definição clássica de verdade — a teoria da correspondência de Aristóteles, que a via como a adequação entre o pensamento e a realidade (veritas est adaequatio rei et intellectus) — quanto a visão bíblica, onde a verdade (emet) é associada à fidelidade e à confiabilidade de Deus. A pós-verdade, como reação ao positivismo do século XIX, manteve o “eu autônomo” do Iluminismo, mas o redefiniu em termos subjetivos, onde o ponto de vista pessoal é tão relevante quanto os próprios eventos.

Os efeitos desse subjetivismo são devastadores. A sociedade contemporânea perdeu a capacidade de conectar informações de forma lógica, enquanto o caos moral se manifesta na fluidez de conceitos como moralidade, identidade e sexualidade. Francis Schaeffer compara esse declínio ao do Império Romano, apontando características como o amor ao espetáculo, a hipersexualização e a rejeição de autoridade, evidentes na cultura atual (Schaeffer, 1968). As revoluções modernas — como a Francesa, a Russa e a Americana do século XX — redefiniram categorias como sexualidade e família, usando a “tolerância” como arma para minar a cosmovisão cristã, culminando em um ambiente onde a verdade é reduzida a um jogo de poder. Sem a Palavra de Deus como âncora, a pós-modernidade conduz a humanidade ao desespero e à fragmentação total.

Os efeitos desse subjetivismo são devastadores. A sociedade contemporânea perdeu a capacidade de conectar informações de forma lógica, enquanto o caos moral se manifesta na fluidez de conceitos como moralidade, identidade e sexualidade.

O Diagnóstico Teológico: A Rebelião contra Deus como Raiz da Crise

A crise da verdade, embora exacerbada pelo Iluminismo e pela pós-modernidade, não é um fenômeno moderno. Sua origem remonta ao Éden, quando o homem rejeitou Deus como fonte da verdade, buscando autonomia ao acreditar na promessa da serpente: “Sereis como Deus” (Gênesis 3:5). O Iluminismo, o racionalismo e a pós-verdade são manifestações históricas dessa mesma rebelião primordial, que troca a autoridade divina pela autonomia humana. A pós-verdade, ao manter o “eu autônomo” do Iluminismo, perpetua essa idolatria, levando à perda de referenciais objetivos e à exaltação do sujeito como árbitro da realidade. A teologia reformada, com sua ênfase na soberania de Deus, diagnostica a raiz desse problema como a idolatria do “eu”, que rejeita a revelação divina e culmina no caos epistemológico que caracteriza o mundo contemporâneo.

A Resposta Reformada: A Verdade Restaurada em Cristo

Diante dessa crise, a teologia reformada oferece uma resposta sólida e esperançosa. A Escritura afirma que a verdade não é uma abstração, mas uma pessoa: Jesus Cristo, que declarou ser “o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). A Igreja, chamada por Paulo de “coluna e baluarte da verdade” (1 Timóteo 3:15), tem a responsabilidade de guardar e proclamar essa verdade, que é tanto objetiva — como um conjunto de proposições que se opõem à mentira (Efésios 4:15) — quanto pessoal, encarnada em Cristo. Duas respostas comuns à pós-verdade, no entanto, são inadequadas: o racionalismo iluminista, que reduz a verdade a argumentos cognitivos, e o experiencialismo pós-moderno, que a subordina a experiências sensoriais, como em igrejas que priorizam o espetáculo em detrimento da doutrina. A solução, segundo a perspectiva reformada, é anunciar Cristo como a Verdade viva, rejeitando as narrativas fragmentadas da pós-modernidade.

Abraham Kuyper, ao afirmar que “não há um único centímetro quadrado de toda a existência humana sobre o qual Cristo, o Senhor de tudo, não clame: É meu!”, reafirma a soberania de Deus sobre toda a realidade (Kuyper, 1880). A Igreja deve, portanto, lutar pela verdade, não como uma causa perdida, mas como uma expressão de sua identidade. Isso exige coragem para proclamar o evangelho com clareza, sem ceder às pressões culturais que buscam diluir a mensagem cristã, seja por meio do liberalismo teológico, que relativiza a Escritura, ou do misticismo monista, que mistura o evangelho com espiritualidades pagãs. A Palavra de Deus, como recurso suficiente, equipa a Igreja para essa missão, permitindo que ela seja “sal e luz” em um mundo envolto em trevas.

Conclusão: Voltar a Deus é Voltar à Realidade

A trajetória histórica do Iluminismo à pós-modernidade revela uma rejeição progressiva da verdade divina, que culmina no caos epistemológico do mundo contemporâneo. O Iluminismo exaltou a razão, o racionalismo a transformou em ídolo, o relativismo a fragmentou, e a pós-modernidade a dissolveu, reduzindo-a a um jogo de poder e subjetividade. Contudo, a teologia reformada aponta para a única esperança: em Cristo, a verdade não apenas existe, mas reina. Voltar a Deus é voltar à realidade, pois somente na revelação divina encontramos o fundamento sólido que o mundo rejeitou. A Igreja, como “coluna e baluarte da verdade”, é chamada a proclamar essa realidade com ousadia, para que, em um mundo fragmentado, a glória de Cristo seja manifesta e a verdade eterna prevaleça.

Referências Bibliográficas

  • Foucault, Michel. Surveiller et Punir: Naissance de la Prison. Paris: Gallimard, 1975.
  • Kuyper, Abraham. Sphere Sovereignty. Palestra inaugural na abertura da Universidade Livre de Amsterdã, 1880.
  • Kuyper, Abraham. Calvinism: Six Stone Lectures. Princeton: Princeton University Press, 1898.
  • Lyotard, Jean-François. La Condition Postmoderne: Rapport sur le Savoir. Paris: Minuit, 1979.
  • Schaeffer, Francis. The God Who Is There. Downers Grove: InterVarsity Press, 1968.
  • Wells, David F. No Place for Truth: Or Whatever Happened to Evangelical Theology? Grand Rapids: Eerdmans, 1993

© 2025 Soberania Hoje. Todos os direitos reservados. Este artigo é uma obra original com citações devidamente creditadas. Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização.

banner assinatura

Este post tem 2 comentários

  1. Angleib

    Excelente artigo. Muito lúcido! Que nosso bondoso Deus continue te abençoando.

Deixe um comentário